Severino e a Cloroquina
- Ulisses Duarte

- 12 de jan. de 2021
- 3 min de leitura

Severino resolveu tomar aquilo que ele chama de “clorofina” para não pegar o coronavírus. Coisa de sua cabeça, sem orientação médica alguma.
Não porque o porteiro do prédio tivesse com algum sintoma da doença. O interesse é preventivo. “É para fortalecer o cabra, coisa de munidade”, assumia com gosto. Tomava um combo ao acordar contendo mel, limão, leite de cabra e, claro, um martelo de cana da roça. Receita do sertão piauiense, sua origem. E acrescentava os comprimidos moídos misturados, no garfo mesmo, antes de empurrar a mistura para a glote, num gole só.
Severino passava horas na portaria do prédio ouvindo rádio, informando-se com sua televisão portátil, e assistindo o sobe e desce incessante dos entregadores para os apartamentos. Foi a partir dos meios de comunicação que ele descobriu o nome do remédio que cura o virótico, e que impulsionou suas últimas conversas nos grupos das redes sociais para criar soluções contra a ameaça do corona.
Eu peguei em ato falho o réu confesso numa das comunicações internas. Seguindo as regras condominiais, ele interfona para a unidade, avisa a chegada do entregador com algum pacote, caixa de isopor nas costas ou sacolas descartáveis, e dá o comando à tropa dos informais que hoje formigam pelos corredores dos prédios.
- Seu Lisses. Chegou o rapaz da farmácia.
- Pode subir – eu confirmo.
- Tá bom, então. Doutor também tá tomando a tal da clorofina, né?
Prezado leitor, foi neste momento que dei por conta que Severino estava se automedicando com a pílula que se tornou mágica para alguns. Depois de perguntas rápidas, Severino se entregou de vez. Misericórdia! Fiquei bastante assustado com o fato.
Dois dias depois, ao passar pela portaria do prédio encontrei com Severino no seu posto de trabalho. Desta vez com máscara, depois de muitas reclamações dos condôminos por seus recorrentes descuidos. Preparei-me para tirar a história a limpo, antes de contar ela completinha aqui para vocês.
Sentei no sofá da recepção e comecei a investigar os motivos daquela presepada.
- Severino, homem de Deus, você não sabe que cloroquina é controlada e que ela não produz efeitos para as pessoas que não estão doentes? – tentei questionar com alguma tranquilidade.
- Sei sim, o homem da Globo falou. Mas eu não acredito. Eles querem matar o pobre!
- Mas Severino, é exatamente este comprimido que pode te matar. Causa infarto, pressão alta, vertigem, náusea, convulsão...
- Então por que dizem que vende na farmácia? Por acaso não morre gente de coisa nenhuma mais no planeta? Só de corona e clorofina? Ah, vá...
Perdi totalmente a paciência. Vociferei contra as autoridades do país que incitavam a população a se automedicar. Falei dos protocolos da OMS e das autoridades sanitárias. Disse para ele que havia lido sobre este comprimido e as contraindicações, resultando em mortes pelo uso indiscriminado e o efeito trágico que fazia nas pessoas que estavam, de forma bastante equivocada, tomando esta coisa sem prescrição médica.
Era um absurdo, uma coisa insana. Se fosse assim então que ele pensasse no suicídio, e que iria deixar a sua esposa viúva e seus filhos órfãos de pai e desamparados.
- Tá bom Doutor. Então vou te mostrar minha clorofina. Chega aqui abestado.
Ele passou pela tela do whatsapp de seu celular um grupo lá de Guaribas, sua cidade natal no Piauí. Muita gente passando a receita e comentando que o remédio é bom. Devido sua falta nas farmácias, ela pode ser feita de forma muito fácil em casa.
A receita: quatro pílulas de aspirina, duas de paracetamol, duas de fenilefrina e uma colher de vitamina C em pó. Tudo bem tranquilo de achar nas prateleiras da farmácia mais próxima. E barato. Bem misturados dá para uma semana, uma dose por dia, ele jura. Severino ainda jogava a mistura no preparado revigorante lá do início do texto e batia à mão.
Comecei a rir alto na recepção.
- Severino, isto não é cloroquina! É qualquer coisa misturada, uma crença popular...
Ele teve a pachorra de responder:
- De fato, e eu sou bobo?! É crença popular sim e nunca fez mal a ninguém. Deixe as pessoas acreditar nela e se proteger junto aos outros procedimentos da televisão. Ou você acha que alguém em Guaribas vai dar esta bola toda para o que manda as autoridades, tim tim por tim tim? Este remédio nunca existiu lá no sertão. A gente resolve do nosso jeito. E ela pode ajudar tá. Lá tem zero caso deste vírus nojento. – completou seu protocolo whatsapiano – Tome distância das pessoas, lave as mãos e fortalece o corpo, homem. E sempre reze pra Nossa Senhora.
Severino me convenceu de forma tão decidida que eu já encomendei com ele uma porção de sua clorofina e desde segunda-feira iniciei o tratamento. Estou me sentindo muitíssimo disposto nestes últimos dias.
Apesar de ainda estar usando a máscara.
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