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Fila da Vacina

  • Foto do escritor: Ulisses Duarte
    Ulisses Duarte
  • 25 de jun. de 2021
  • 6 min de leitura

Atualizado: 30 de jun. de 2021


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Às nove da manhã de quarta-feira, cheguei ao Teatro Municipal para tomar a primeira dose da vacina do coronavírus. Escolhi dirigir-me, para me imunizar, ao templo das artes cênicas no Centro da cidade: se é para vacinar, que tal visitar o lugar da alta cultura, uma coisa elegante, de dar orgulho. No Municipal, nas minhas fantasias mais íntimas, sonhei que estava subindo ao palco da guerra contra o vírus armado com uma lança mortífera e uma grossa armadura, representada numa ópera em três atos: a espera na fila, a injeção tomada e o grand finale com a certeza da imunidade.

Como de costume nas minhas andanças, algumas coisas estranhas testemunhei por lá.

Cerca de quarenta pessoas esperavam sua vez na fila, umas grudadas nos cangotes das outras para não perder aquele sagrado lugar. O nosso povo gostava muito de calor humano. Muitos tossiam ou fungavam, já que era um dia úmido e frio, daqueles que nos traziam as piores rinites alérgicas. Sorte que era um espaço aberto e que estava todo mundo de máscara, raciocinei. Até que um senhor puxou a máscara de pano para baixo e lançou um espirro estrondoso para o nosso lado sem a proteção facial. A névoa de perdigotos voou livremente pela atmosfera, e ainda surfou numa lufada de vento que acabou por espalhar o spray de fluido humano ao longo da fila. Fiquei ainda mais ansioso pela vacina, dando três passos para o lado contrário, e prendendo a respiração o quanto pude para deixar a nuvem passar.

Logo depois, uma mulher com cerca de quarenta anos chegou e tomou o lugar de um rapaz bem arrumado no início da fila, fora de sua suposta ordem. Foi aí que começou uma discussão animada do rapaz com os vigias. Alguns seguranças do teatro identificaram aquele molecote como um usual guardador de lugar na fila da vacina:

– Isto é coisa errada, rapaz. Você de novo por aqui!?!? - denunciou um dos homens da vigilância.

Segundo ele, o rapaz estava há alguns dias repetindo o mesmo ato, e já tinha sido avisado que seria expulso das dependências externas ao teatro. Sua estratégia era de entrar na fila mais cedo, para meia hora depois dar lugar a algum colega de trabalho. Se dizia funcionário de uma clínica médica do Centro da cidade, bem pertinho dali. Tudo dentro da legalidade, defendia-se o jovem, já que era seu direito de ir e vir de ficar na fila, conforme orientou seu chefe. E por fim, afirmou ao vigia que tentava o questionar:

- E como fica minha liberdade de expressão?

Pelo jeito, ele poderia ocupar qualquer lugar que quisesse, por força de um clichê utilizado largamente para qualquer objetivo alheio aos critérios morais deste país. A mulher acabou entrando na antessala do teatro, na triagem de verificação da documentação, e acabou sendo vacinada, mesmo a contragosto da equipe de vigilância.

Uma senhora pequena e de rosto corado se colocou atrás de mim. Percebi que ela apertava as mãos em torno do corpo, e sorria de forma amedrontada. Quando reparei seu nervosismo ela perguntou:

- Será que dói essa vacina? Morro de medo de injeção, moço.

Respondi a ela que não doía nada, o pior era ter que aguentar as possíveis dores de cabeça, calafrios, febre e náuseas da reação do organismo à vacina no dia posterior. Ela ficou em silêncio, e passou a interagir com a tela de seu celular luminoso ao ouvir um sermão religioso, que fazia alguma referência ao santo padroeiro das causas impossíveis. Rezava baixinho.

A pergunta mais frequente de quem chegava ao posto de vacinação naquela manhã era muito repetitiva, uma espécie de mantra de quem entrava no pátio do prédio:

- Moço, qual a vacina que estão dando?

Quando respondiam que era da empresa norte americana e não da inglesa, a pessoa dava pulos de alegria e corria para o final da fila. Percebi que muitas pessoas puxavam seu telefone do bolso e mandavam mensagens de áudio, avisando aos amigos que naquele posto tinha a vacina P e não a A. O aviso pretendia com que outra pessoa pudesse ir rápido ao posto usufruir daquela relíquia rara naquela mesma hora. Um jovem agente de saúde, ao tentar organizar a fila que já serpenteava o pátio externo do teatro, avisou:

- A vacina P está nas últimas doses do estoque. Depois deste ponto da fila só temos a A ou a C. – e marcou com a mão a um ponto com a distância de poucas pessoas atrás de mim.

A notícia gerou um burburinho entre os que aguardavam mais ao fundo. Um senhor, que havia chegado por último, avisou que se não tivesse a vacina P, ele não iria tomar outra qualquer e aconselhava ninguém a fazê-lo, tentando organizar um levante espontâneo de não imunizados. E começou a enumerar os motivos de sua justa decisão para todo mundo ouvir. A eficácia da vacina C era muito menor que as outras, já que muita gente vacinada andava morrendo. A vacina A até era boa, mas a reação dela poderia desencadear o infarto, AVC, epilepsia e, até mesmo, assegurava ele, hemorroidas.

O jovem agente de saúde, indignado, tentou conversar com o senhor para ele manter o silêncio, mas não obteve muito sucesso. Como o senhor continuou a discursar, o agente acusou-o de gerar a desinformação a partir das notícias falsas que circulavam nas redes sociais. O senhor se defendeu dizendo que tinha completa confiança em suas informações, era tudinho provado pela ciência, tim-tim por tim-tim. O jovem então perguntou:

- Então o senhor é infectologista, para estar seguro de todas essas coisas?

O coroa provocou:

- Não. Sou taxista. Mas eu sou muito bem informado! Sei mais do que vocês porque ouço notícias o dia inteiro. Vocês da ciência são marxistas globalistas!

Por sorte, a fila andou e eu rumei para dentro do hall do prédio. Faltavam poucos passos para a tão aguardada vacina.

No salão de vacinação, os quatro pontos de vacinação eram ocupados pelas técnicas de enfermagem, que recebiam os cidadãos em sua ordem a serem vacinados. Boa parte daqueles que entravam para se vacinar traziam um respectivo acompanhante, e puxavam seus diversos tipos de equipamentos multimídia para o registro o momento.

Os vacinados tinham esta excêntrica mania, tirar selfies enquanto recebiam a dose no braço. Isto quando não tentavam gravar todo o processo, desde o empuxo do líquido no embolo da seringa, a análise do líquido viscoso, até a aplicação no braço ao ser vacinado, geralmente fazendo pose com os tradicionais gestos com dois dedos, o V de vitória, depois da recorrente careta na entrada da agulha.

Na sequência do ato da vacina, os técnicos de enfermagem seguiam sendo questionados a prestar todo o tipo de informação, como se fossem depoentes numa CPI no planalto. Os vacinados seguiam com uma análise rigorosa da seringa para saber se algo tinha realmente sido injetado, voltavam às perguntas sobre as possíveis reações da vacina, suas eficácias e sua forma de agir no organismo, além de outros comentários mais amenos. Os técnicos, muito solícitos e sempre com um belo sorriso no rosto, tentavam responder as principais dúvidas, e indicavam ao atendido para seguirem à saída mais rápida, chamando o próximo da fila.

Recebi minha vacina no braço direito, sem fazer foto, nem registrar o momento em vídeo. Não que eu seja contra, apenas me esqueci de fazer, tamanho o alívio que sentia naquele momento. A substância entrou nas minhas veias e senti o calor se espalhar pelo membro superior. Para mim, tomar a vacina era como votar no sistema eleitoral nacional: um longo tempo de espera, muitas pesquisas e argumentos nas discussões entre a família e a esfera pública, para um ato que é realizado em pouquíssimos segundos, como num passe de mágica. E ainda tem uma forte oposição com campanha de difamação aberta entre seus detratores, um absurdo.

Saí do salão do Municipal feliz e bastante realizado. Fiz algumas ligações para a família para contar a minha vitória pessoal naquela manhã. Minutos depois, percebi que o senhor que vociferou contra o jovem agente de saúde saiu com o algodão apertado no braço. Surpreendi-me com o fato dele ter consentido em tomar a vacina A, aquela que ele se dizia radicalmente contra. Esperei ele sair do prédio. A curiosidade foi mais forte do que eu, e tive que o interpelar.

- Então, senhor, aceitou tomar a vacina?

O coroa confirmou:

- Melhor tomar a A do que nada. Já perdi amigos e três parentes desta doença maldita. Não vou perder meu tempo. Só espero que essa vacina funcione.

Eu tive que concordar:

- Verdade. E que se dane as hemorroidas!

A lucidez, às vezes surge nos momentos mais inesperados da vida. O medo da infecção pelo coronavírus faz a fila da vacina andar, e a caravana da saúde seguir seu trabalho.

Já estou pronto para a segunda dose em setembro. Quero agradecer e dar um viva ao nosso Sistema Único de Saúde e seus grandes profissionais. Nossa geração vai ter que se orgulhar, depois que esta difícil batalha, de fato, passar. Vai passar, e será pela fila da vacina.

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