Dona Glória e a Campanha Nacional de Vacinação
- Ulisses Duarte

- 16 de abr. de 2021
- 4 min de leitura

Dona Glória, a miserável senhorinha portuguesa que mora embaixo dos meus pés, tem o péssimo costume de falar pelo telefone da janela de sua sala. E, além disso, em um volume muito alto que dá para ouvir do sexto andar onde moro os seus berros desesperados de fúria, regados com a mais completa solidão emocional, depois de décadas vivendo sozinha.
Sempre reconheço o destinatário de suas súplicas, seu filho mais velho morador da Tijuca, o Luís, chamado por ela de modo carinhoso: Luizinho. Acredito que ela só receba telefonemas dele, já que os demais parentes já a abandonaram em vida. Uma pena, reconheço, a distância familiar para Dona Glória diz muito sobre suas claríssimas confusões mentais em forma de paranoias, neuroses e fobia dos vizinhos. Seus sintomas básicos. Vocês sabem como eu já sofri com essa senhora.
Em todas as ligações ao longo do mês de março, o motivo da conversa era bastante repetitivo. A primeira dose da vacina a ser aplicada na casmurra, o que já estava bastante atrasada. Ela inventava mil motivos para prorrogar o dia de sua imunização. O Luís, desesperado pelo desinteresse da mãe – que além de tudo perambulava sem o uso de máscara todas as manhãs pelo bairro - fazia com que ele tentasse a convencer em várias conversas descabidas.
Tudo que ela não fazia nestas ligações era prezar por algum equilíbrio. Dona Glória rosnava, gritava, xingava, e disparava perdigotos a meia altura da janela como se estivesse chuviscando no coitado de seu vizinho de baixo, o vivente do quarto andar. O fato me fez notar que os vasos de flores no parapeito da janela do vizinho eram regados com os cuspes de Dona Glória. E olha que as folhagens estavam bonitas, apesar de algumas folhas queimadas. Agradeço nestas horas por morar em cima de sua cabeça; pelo menos nenhum fluido de seu corpo me atingia graças ao efeito da gravidade.
Nos seus dribles costumeiros contra a vacinação, ouvi um inusitado diálogo que ela promoveu em um sábado recente.
- Não vou tomar porra nenhuma de vacina, muito menos a vachina, aquela droga chinesa – Dona Glória subiu o tom, mais uma vez, contra seu filho.
Compreendi, por ouvir parte da conversa, que ele tentava a manipular com uma estratégia básica: dizia que ela iria tomar uma vacina aprovada, registrada, e com ótimos resultados de eficácia em Portugal, o lugar perfeito e mais civilizado da humanidade para Dona Glória. A vacina do Oriente ela já tinha descartado há muito tempo, antes mesmo dela chegar aqui no nosso país longínquo, outro lugar também incivilizado. E assim ela seguia renitente:
- Não vou tomar vacina inglesa, não confio naquela gente da maldita ilhazinha. Não tomo vacina de americanos, simplórios e muito interesseiros, só pensam em grana. Não tomo vacina daquela gente rasteira da Alemanha, já fizeram o diabo nas guerras, imagino que fazem vacina para matar mais uns milhões – e assim ela ia emendando com suas restrições às nacionalidades das vacinas que atualmente estão em vigência.
Depois de mais de trinta minutos de réplicas e tréplicas, como num debate eleitoral, ouvi Dona Glória falar em alto e bom brado, confirmando que iria tomar a picada da agulha, desde que atendessem a sua contraproposta:
- Seu filho da mãe, vou tomar logo essa merda se você me jurar que vai me levar lá no domingo. – Acredito que ele deva a ter fisgado com uma proposta bem indecente, já que ela respondeu: - Se me levar pra lá, eu tomo... Então tá certo? Vou te esperar, Luizinho. Não vai me mentir, hein? Tchau!
O milagre foi realizado. Mas pouca gente acreditava que ela estaria disposta para tomar a vacina. O fato desconhecido para todos era de que Dona Glória estava se preparando para mais uma grande ação, a mais importante do ano para ela.
No domingo ensolarado, eu e boa parte do prédio já sabíamos que Dona Glória iria se imunizar de acordo com as normas dos órgãos de saúde nacional. Eu estava chegando no prédio, depois de uma ida matinal ao mercado, quando vi Dona Glória saindo da recepção, acompanhada de seu filho a tiracolo, com sua bengala de madeira e uma blusa verde-amarela, nas cores do nosso Brasil varonil. Tive que comentar de um jeito jocoso, já que sabia que ela odiava tudo que era brasileiro, e eu queria a cutucar:
- Olá Dona Glória, bonita a roupa para se vacinar, hein. É uma homenagem aos profissionais da saúde de nosso país ou à Fiocruz? – ria por dentro quando completei a frase, sabia que iria vir um xingamento daqueles, e que sua ira comigo iria durar mais de uma quinzena, fácil, fácil.
Dona Glória, parou na escadaria de entrada no prédio, olhou-me de forma bem fixa de cima abaixo e, bem irritada, e disparou:
- Esse teu país é uma merda! Mas nós vamos mudar isso, apesar de você ser um idiota. – Decidi não responder sua provocação. Apenas desejei um bom domingo e que se ela esbaldasse com a picada da vacina.
Luís auxiliou ela com as mãos, ajudando-a descer o pequeno lance de escadas de entrada e, enfim, contou-me qual seria o motivo do passeio, enquanto ela entrava no uber que os aguardava em frente ao prédio:
- Desculpa pela resposta da mãe, ela tá nervosa. Sabe como ela é. Ela vai primeiro tomar a vacina e depois vai encontrar com duas amigas bem anti-i-i-i-igas do tempo da igreja. Elas estão a esperando na orla de Copacabana.
Muito curioso, tive que perguntar, já suspeitava do que seria:
- É a manifestação aquela contra as restrições do comércio da covid?
Ele me contou, nem um pouco envergonhado:
-É, mas ela não é a favor de político nenhum, não. Não é coisa de partido, viu. Ela só quer o país livre desta mentira chamada coronavírus. Isso é coisa da mídia, agora só morre gente deste corona? E o tratamento precoce que não dão?
- Ah, tá. – respondi secamente: - Faz sentido.
E ele concluiu:
- Só assim consegui tirar a mãe de casa. O sonho dela e das amigas é acabar com essa ditadura do corona que está instalada no Brasil. Um absurdo.
E foi assim que eu me decepcionei, pela primeira vez, com o agradável e educado filho de Dona Glória. Talvez, eu tivesse sido mesmo um idiota ao pensar que as coisas seriam diferentes com o Luizinho.
O fruto, como dizem, nunca cai longe do pé.
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