Dona Glória e a Reforma no Oitavo Andar
- Ulisses Duarte

- 26 de jan. de 2021
- 5 min de leitura

Dona Glória, sempre ela, voltou a atacar novamente há algumas semanas. Se vocês ainda não a conhecem, é melhor não conhecê-la. Ela é a nossa querida vizinha de baixo. Uma senhora ranzinza e solitária que sempre repete que veio da capital lusitana e odeia o clima do Brasil: o calor, a cultura e principalmente, a vizinhança.
Poderia voltar para além-mar antes do desencarne, desejo eu com alguma parcela de culpa. Com infortúnio, adoro Portugal. Meu avô materno dizia que parte de nossos antepassados vieram da região metropolitana de Lisboa. Faço votos que eles nunca tenham tido contatos com os ascendentes desta intragável senhora.
Acho que já contei alguma vez que uma sinistra infiltração de água, em frente à privada de seu banheiro, era o tema de sua constante implicação conosco. Nosso banheiro seria a nossa arma química contra ela. A cada par de meses, mais ou menos, uma torrente de água que ela dizia muito suja descia pelo alçapão de seu teto e inundava o piso de sua “casa de banho”, como se chama um banheiro na sua terrinha. Ela interfonava desesperada para o porteiro Severino, chamava aos gritos a síndica e, obviamente, nos culpabilizava por todos os sinistros ocorridos na sua unidade, isso pelo menos desde o dia em que viemos ao mundo.
- Tenho certeza que você joga água suja no meu banheiro! – ela repete exaustivamente quando me interfona para reforçar sua tese de que o crime é doloso, de minha vontade própria.
Depois das reiteradas revisões nos canos, testes no banheiro com jatos de água e consulta com dois técnicos hidráulicos, nunca conseguimos descobrir o real motivo do problema. Acontece que neste ano Dona Glória esqueceu a infiltração do banheiro, como se ela tivesse nunca existido. Estou acreditando em um vazamento do tipo psicológico, se é que isso existe.
Mas o problema agora é outro.
Faz um pouco mais de um mês que um apartamento do oitavo andar iniciou uma reforma que nunca acaba. Moramos no sexto andar. Desde às nove horas da manhã, parece que uma banda de heavy metal de garagem, com músicos inexperientes e incompetentes, badala na nossa cabeça no último volume de um amplificador chiado dentro da nossa sala de estar. Marteletes, esmiril, talhadeiras, marretas e furadeiras ad infinitum, das nove horas até o final da tarde. São esses os instrumentos da banda: inimigos do silêncio diurno.
Há alguns dias ouvi Dona Glória surtando no telefone, provavelmente falando com seu filho que mora no Flamengo, dizendo que não dava mais para suportar aquele barulho infernal e mais uma sequência de palavrões contra seu descendente que tentava a demover da ideia de reagir ao problema. Confesso que ri bastante por dentro. Já que eu também estava sendo penalizado, tendo que trabalhar de casa e fazer reuniões online ouvindo a sinfonia do caos que a cada dia aumentava, pelo menos ela também estava tendo a sua punição merecida com o fim de suas sonecas à tarde.
Acontece que, no outro dia pela manhã, fui surpreendido com algumas batidas bruscas na porta. Depois de eu avisar ao visitante, “calma, estou indo, só um pouquinho”, as batidas se transformaram em golpes de bengala de madeira pesada no marco da porta, no corpo da porta e, finalmente, tentando arrombar a fechadura. Assustado, quando espreitei no olho mágico, adivinhem...
Dona Glória estava surtada. Dava socos de mão fechada na maçaneta e dizia:
- Abre seu merda! Vou derrubar ela e acabar com você! Quero a sua cabeça!
Para não agir de forma irracional, parei para pensar por alguns segundos e tentei me segurar naquele momento para não praticar algum ato descompensado de grosseria e violência. Não queria repetir o crime de Raskólnikov de Dostoiéski e fazer justiça com as próprias mãos contra uma velhinha indefesa. Depois, sempre vem o castigo, como sabemos. Com a porta ainda fechada, pedi calma para tentar entender o que se passava. Dona Glória berrava no corredor:
- Pare com este barulho, seu vagabundo. Eu não consigo mais assistir tevê, não posso dormir, não consigo descansar, não tenho paz neste prédio. Eu sei que você está sendo pago para fazer esses barulhos.
Pronto. Agora compreendi onde iríamos chegar. Dona Glória nos culpava pela reforma a pelo menos dois pavimentos acima de nossas cabeças. Tentei contra-argumentar acreditando em sua impossível lucidez, explicando que a reforma era no oitavo andar e que eu também estava sofrendo com ela. Lógico que ela não acreditou.
Seguiu com vários xingamentos contra mim, a síndica e o porteiro, todos unidos em prol de uma causa maior que era extinguir a sua pessoa. E desandou a citar todos os fatos que comprovavam suas suspeitas de que eu estava sendo manipulado para que eu desse um jeito de lhe incomodar perpetuamente até ela morrer ou, quem sabe, desistir de morar naquele prédio. E mais, a obra até poderia ser de outro andar, mas ela tinha certeza de se tratar de um plano elaborado por nós para acabar com o seu silêncio.
Quando seu ataque feroz e violento deu uma trégua, eu abri uma fresta da entrada e, ao enxergar Dona Glória a um metro da porta, dei um passo para trás por segurança e declarei:
- Ok, Dona Glória, você está certa. Estou sendo pago para acabar com a sua vida. Mas vamos fazer um trato, um acordo de paz, agora? E eu paro com isto.
- Vamos, seu desgraçado, o que você quer de mim? – ela me fuzilou com os olhos por trás dos aros dos óculos tortos e enferrujados.
- Ando vendo a senhora subindo a rua, sem máscara para se proteger do coronavírus, também estou sabendo que você está brigando muito com o seu querido filho. E anda discutindo muito com o porteiro, com a síndica, com todo mundo.
- E o que você tem a ver com isto? Da minha vida cuido eu! – ela rebateu de forma fervorosa, como sempre.
- Pois então Dona Glória. Ainda não sacou, não? A obra é falsa. Ela está sendo patrocinada por seu filho. Ele quer que a senhora fique durante a pandemia lá no apartamento dele no Flamengo, já que a senhora anda muito sozinha, não anda tomando as medidas necessárias e precisa de companhia. Ele que anda nos pagando para fazer barulho. Eu posso até devolver o dinheiro, e...
Ela me interrompeu secamente, virou as costas e gritou antes de descer as escadas internas do prédio, apoiada em sua bengala:
- Brasileirinhos desgraçados!
Cinco minutos depois, eu ouvia os berros de Dona Glória no telefone, avisando que iria excluir alguém da herança e que estaria pronta no outro dia bem cedo pela manhã.
Desde então, há exatos dez dias, nem sinal de Dona Glória. Também não me incomodo mais com o barulho da obra, até vejo as vantagens de uma boa reforma.
Espero, com sinceridade, que esteja tudo bem com o pessoal do bairro Flamengo. Imagem: https://br.freepik.com/fotos/mao'>Mão foto criado por rawpixel.com - br.freepik.com.






Comentários