Roxo ou Lilás
- Ulisses Duarte

- 29 de dez. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 16 de fev. de 2021

Uma célebre Nação foi governada em nossa querida América Latina por uma ditadura com normas excêntricas. Ditaduras em geral são exóticas, flertam com o inacreditável, sabemos, mas elas existem de fato. Porém, algumas restrições impostas naquele lugar abençoado por Deus, e castigado por seus governantes, colocariam qualquer pessoa em condições normais de suas faculdades mentais em posição de grande embaraço.
O governo instituído pela junta militar anunciou em meados da primavera que vedava aos seus concidadãos a cor roxa. Nas vestimentas, nas bandeiras, nos acessórios domésticos ou nas fachadas das casas. Pintar, vestir ou apresentar qualquer traço de roxo era crime grave para o Departamento de Justiça, com detenções pesadas de até oito anos de reclusão e, invariavelmente, precedidas por tortura.
Vocês devem se perguntar? Mas por que a cor roxa, o que tem a ver com as disputas políticas e a luta pela democracia? Chegamos ao ponto.
Tudo aconteceu no dia cívico mais importante do país, uma comemoração que envolvia uma grandiosa parada militar com desfile das tropas, e a apresentação do novo programa nuclear do general empossado. Foi quando uma adolescente, devidamente selecionada numa escola pública de excelência, foi entrevistada pela maior rede de televisão da Nação. A menina estava bem ensaiada pelo experiente diretor da escola, ao decorar suas respostas à repórter, enfatizando o impacto positivo do novo programa educacional desenvolvido pela junta militar, com rasgados elogios à educação do país. Estava junto à transmissão o Ministro da educação e cultura, o braço direito do general de alta estirpe, que fiscalizava tudo o que passava no jornal televisivo mais importante do horário nobre.
A câmera da tevê foi posicionada aos fundos da tribuna das autoridades, ao pé de uma árvore frondosa que garantia uma sombra refrescante naquele dia de grande calor. No meio da conversa com a jovem, que ressaltava o amor desenfreado que sentia pela pátria e sua família, aprendida em sala de aula por brilhantes professores alinhados com a educação não ideológica instituída pelos militares, percebeu que esvoaçou da árvore, e acabou pousando no seu rosto, uma grande pétala de flor.
Como perdera a atenção no repórter, que lhe perguntava naquele momento o que gostaria de ser quando crescesse, ela embananou-se com a resposta ensaiada, “de tornar-se uma médica do sistema público de saúde para a cura das enfermidades dos mais necessitados”, e respondeu de improviso:
- Essa flor que caiu é roxa! Tem muitas delas lá em cima. Quando elas descem para o chão e saem do galho lá no alto elas pintam esse chão na cor da esperança de um mundo melhor. Eu serei como ela!
O mal estar visível na expressão do Ministro ficou claro ao público espectador na sua entrevista logo após a menina. Ele compreendeu, sem alguma dúvida, que era um caso de mensagem cifrada inserida pelos grupos radicais que cooptaram a garota, e enviaram sua mensagem codificada ao país. Não aceitaria a provocação. Ao subir o palanque das autoridades, deu ordens aos subordinados de fecharem a escola, iniciarem uma vasta investigação inquisitorial contra a direção e os professores. Além disso, mandou pôr abaixo a árvore, pivô da discórdia, tão logo acabasse a cerimônia.
A partir desse fato, a população do país iniciou um princípio de revolta. Pais e estudantes de algumas escolas públicas passaram a carregar pétalas de ipê roxo nas golas das camisas ou, na falta delas, fitinhas da cor consagrada. Artistas plásticos expuseram novas obras baseadas na cor sediciosa. Construções inovaram a pintura de interiores e na aquisição de móveis no tom restringido, assim como pichações surgiram nos centros das principais cidades com frases de efeito, como: “Libertem a primavera” e “Estou roxo contra a opressão”.
O governo respondeu com energia abrupta contra os insurgentes como uma serra elétrica. Foram proibidos os shows e festivais agendados na estação mais colorida do ano. Aglomerações com mais de dez pessoas eram suspeitas ao olhar da polícia, e andar com a cor roxa por aí era ato estritamente ilícito, por decreto-lei.
As mobilizações contra a tirania se multiplicaram como as flores do ipê roxo na árvore pivô da discórdia. Com a proibição da cor roxa, os manifestantes passaram a debochar dos agentes de segurança pública ao sofisticar sua combinação de cores e dar margens para a confusão de cores misturadas, inclusive aos especialistas. Lilás, magenta, violeta de vários tons foram usadas para burlar o decreto do governo.
Para resolver o impasse, o general rosnou em cadeia nacional de rádio e televisão:
- Senhores habitantes de nossa amada pátria! Não há como confundir a cor que está proibida. Nem ouso mencionar o nome desse tom subversivo. Mas vamos ao novo decreto expedido pela junta militar na manhã de hoje. Devido aos problemas causados pelos terroristas, está terminantemente proibido o uso das cores vermelha e azul, já que ambas diluídas em quaisquer proporções se transformam em tons que resultam na cor a ser radicalmente extinta da nossa pátria.
A pequena oposição autorizada no parlamento tentou questionar as regras dos militares. O tema que causou maior divergência, na Frente Organizada pela Democracia Amada entre os Cidadãos (a FODA-C), no seu congresso anual clandestino, foi o debate fervoroso em torno de qual era exatamente o tom de roxo que os militares haviam proibido.
Não deu outra. A junta militar agiu rapidamente. Articulou a suspensão do parlamento, depois de um longo período de averiguação das possibilidades de novas restrições às ameaças subversivas. Verde, amarelo e laranja acabaram entrando na lista proibida. No governo dos militares, também foi criada uma nova bandeira em tons considerados mais isentos: o branco. A oposição optou pelo cinza. Desde então nenhuma outra cor foi objeto de litígio entre os militares e os subversivos.
Os ipês foram completamente arrancados do solo daquela Nação. Nenhuma alusão à cor proibida ficava sem uma rígida punição. A menina, promotora do dissídio, acabou por nunca se formar em Medicina. Foi para o exílio em um país vizinho com sua família. Em defesa daquela mesma ditadura, estabeleceu-se uma permanente vigilância.
As novas gerações descobriram um novo colorismo: conseguiam distinguir e nomear dezenas de tons bastante sutis que iam do branco ao preto, sem passar pelo roxo. Viviam como se tivessem a liberdade de escolher qualquer uma das cores variantes dos tediosos tons alvinegros. Foi o suficiente para mantê-las inertes e, além de tudo, satisfeitas, e só. Imagem: 'https://br.freepik.com/vetores/aquarela'>Aquarela vetor criado por starline - br.freepik.com






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