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O Uivo e o Incêndio

  • Foto do escritor: Ulisses Duarte
    Ulisses Duarte
  • 22 de jan. de 2021
  • 5 min de leitura

Atualizado: 23 de jan. de 2021


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Sidnei imitou o uivo do cão no quintal do vizinho, poucas noites antes da tragédia, mais de três décadas atrás. Seu bebê, com alguns meses de vida, sorria a cada vez que o uivo agudo e prolongado saía do focinho canino, assim como na perfeita imitação do pai. O cão que uivava parecia que procurava por alguém que o tirasse da situação de abandono, já que habitava um pátio escuro, descuidado, e cheio de ervas daninhas. O pai, ao perceber o prazer do bebê com aquilo, simulava o animal solitário ao lado do prédio, num sopro de ar contínuo formando um som agudo e afunilado. Era uma forma de fazer a criança brincar.

Uivar, como aquele cachorro do vizinho fazia nas madrugadas de frio intenso em Porto Alegre, era sinal de péssima sorte. Sidnei chegou a ser avisado por sua avó para não fazer aquilo. Ao incorporar a entidade da Preta Velha, nos seus ritos religiosos em sua casa de benzer, ela tentou o advertir. Supunha que daria tempo de detê-lo com a sua profecia. A entidade espiritual falou através dela para a proteção do pai e do filho, numa visita fortuita que se transformou numa sessão de avisos sobrenaturais:

- Sidnei, não faça isso não. Os espíritos obsessores habitam os uivos dos cachorros, rapaz. Não os atraia para perto.

No dia quinze de julho do ano de 1983, em mais uma noite gelada e chuvosa do inverno gaúcho, o cachorro do vizinho não uivou como de costume. O silêncio tomava conta da rua residencial daquele bairro tranquilo. Na noite anterior, o bebê havia urinado no colchão durante uma troca de fraldas. Sidnei trouxera um aquecedor elétrico da casa de sua mãe para resolver o problema do colchão molhado. Na sala de estar, ele ligou a televisão para assistir ao jornal televisivo das nove horas, enquanto sua esposa esquentava o jantar na cozinha. No quarto, a estufa fazia seu trabalho de secar a poça de urina que empapou as camadas densas de espuma.

A estufa foi colocada no estrado da cama, à meia distância do colchão escorado na parede. O bebê havia ficado na casa da avó em razão do frio intenso que fazia lá fora, depois de uma ligeira febre vespertina que causou um pouco de preocupação nos pais. A mãe, depois do seu expediente de trabalho, concordou em deixar o pequeno menino protegido do vento congelante das ruas, evitando levá-lo da casa da avó à sua casa, como era de praxe.

No quarto vazio, o colchão deslizou da parede branca para cima do aquecedor num movimento brusco e inexplicável por aqueles que, posteriormente, buscaram alguma causa lógica no acontecido. Em poucos instantes, o fogo prendeu em chamas altas no quarto do apartamento do terceiro andar começando pelo colchão de casal, ao lado do berço do bebê, alastrando-se ligeiro para os outros móveis, num rastro de calor e destruição.

Ao sentir o cheiro forte da espessa fumaça, a mãe do bebê correu para o quarto, e assustou-se com as labaredas de fogo já incontroláveis. Gritou em busca de ajuda. No desespero, Sidnei correu para o corredor do prédio em busca de extintores para apagar o incêndio. Todos os tubos estavam inoperantes, já que suas validades estavam vencidas. Desesperou-se ao pensar que o bebê poderia estar dormindo no berço do quarto. Logo lembrou que ele havia sido deixado na casa da avó, depois de suas reiteradas súplicas. Ao entrar no quarto, o berço já estava completamente queimado pelo fogo.

Sidnei deveria raciocinar rápido. O único jeito encontrado era abrir as janelas e jogar o colchão em labaredas para fora do edifício, para tentar salvar as outras peças daquele apartamento, adquirido em longas prestações. Sidnei sentiu seus braços arderem ao puxar o colchão para si e, ao empurrá-lo no parapeito da janela, percebeu o erro cometido. A primeira lufada de vento que atravessou a janela aberta fez o colchão, altamente inflamável, explodir. Sidnei sentiu os seus braços chamuscarem, e recebeu o peso do colchão flamejante que o derrubou em cima do que sobrou da cama. Ele jogou o objeto incandescente para o lado, e levantou-se para buscar ajuda.

O Corpo de Bombeiros chegou em menos de dez minutos. Sidnei tentou ajudar os combatentes no controle do incêndio. Ele tentava salvar o mobiliário da sala e os documentos guardados nos armários, quando um vizinho do prédio percebeu os sinais de suas lesões expostas: seus braços irradiavam uma cor salpicada em vermelho-vivo, com lascas de peles mortas penduradas no limite dos punhos e ao longo do antebraço. Sidnei não sentia a dor das queimaduras, nem percebia os graves ferimentos de terceiro grau. Ele estava eletrizado pelo desespero que o abateu, e que o levou à ação impulsiva sem perceber sua precária condição física.

Tudo o que tinha no apartamento foi perdido pela ação do fogo, da água e da fumaça.

Dentro da ambulância, Sidnei foi medicado e levado para emergência do pronto-socorro, no setor de tratamento das queimaduras graves. Foram quatro meses de recuperação com os dois braços enfaixados e com uma dor lancinante contínua até a completa cicatrização das feridas.

E a história não terminou por aí. Após um mês do incêndio, Sidnei foi levado por seu pai até o imóvel incendiado para verificar os resultados do desastre e diminuir sua ansiedade quanto ao trauma vivido. O imóvel estava completamente destruído, nada a ser recuperado. No quarto do casal restou uma bola de cinzas, um bidê queimado de proporções médias jogado no canto daquele ambiente, entre os destroços daquele espaço arruinado pela total combustão.

A esfera carbonizada foi aberta com alguns socos leves. No seu interior, como se fosse um tesouro a ser coletado, todas as roupas do bebê estavam acumuladas em perfeito estado, sem sinais de danos pelo efeito do fogo. O avô do bebê sentiu-se confuso quanto a esse fato surpreendente: as roupas da criança eram os únicos objetos que restavam depois do sinistro. As roupas foram lavadas uma única vez, tirando o cheiro de fumaça, para serem novamente aproveitadas pela criança, para a surpresa de todos os amigos e familiares que acompanharam o caso.

A avó benzedeira, aquela que havia aconselhado Sidnei a não imitar o uivo do cão, justificou a preservação das roupas do bebê com uma nova interpretação de além-mundo:

- As roupas não queimaram, Sidnei, porque a criança é inocente. Por enquanto, ela não possui nada a expiar na Terra. – E concluiu: - E tem a proteção dos bons espíritos.

Há aqueles que não vão acreditar completamente nos acontecimentos narrados. Outros, considerarão que alguns pontos podem ter sido exagerados. Asseguro a vocês que esses fatos são reais. Eles foram vividos de verdade por essas pessoas.

Eu era o bebê que sobreviveu àquele terrível incêndio no inverno de 1983. O fogo poderia ter me abatido com apenas alguns meses de idade. Meu pai, Sidnei, foi quem sobreviveu a essa história, agora contada a todos vocês. Ele reconstruiu toda a sua vida a partir daquele fato que quase o aniquilou. Assim, ele fez das cinzas do apartamento o nosso novo ninho, como no mito da ave fênix. Comprou todos os móveis e recolocou tudo de novo no seu lugar, depois daquela triste devastação.

Desde julho daquele ano, poucos meses depois de eu ter nascido, meu pai nunca mais uivou a esmo. Nem de brincadeira. Imitar o uivo, sejam de lobos, raposas ou cães solitários, não nos trazem boas recordações.

Na dúvida, sempre é melhor não brincarmos com a sorte. E ela tem nos ajudado.



*colaboração e coautoria: Sidnei Oscar Duarte



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