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O Surto

  • Foto do escritor: Ulisses Duarte
    Ulisses Duarte
  • 1 de abr. de 2021
  • 4 min de leitura

Atualizado: 3 de mai. de 2021


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Uma turma de aedes aegypti, daquela espécie de mosquitos indóceis que nos trazem terríveis doenças, vivia há anos infestando um hospital público. Numa noite qualquer, a fêmea líder daquele grupo marcou uma assembleia extraordinária de urgência. Tinha alguma coisa estranha no ar.

A fama e o prestígio daquela nuvem de mosquitos, agentes transmissores de moléstias graves, não eram mais reconhecidos como antigamente. A turma já não precisava mais fugir do fumacê das ruas, nem driblar as raquetes elétricas que os matavam às pencas nos edifícios. A vida estava pacata. Os humanos não tinham mais medo de suas assombrosas ameaças. Os insetos viviam agora com baixa autoestima, alguns até se jogavam contra as latas de inseticida numa atitude desesperada.

A mosquita-alfa, a mais importante líder da mosquitada, quando saía para caçar suas presas, enfiava seu bico longo sem dó, como uma afiada broca perfuradora na sua vítima indefesa. Numa caçada vespertina, encontrou um homem deitado numa maca hospitalar e agarrado a um tubo de oxigênio, com a perna desprotegida, ótima para penetrar.

A mosquita ajeitou suas asas delgadas, que batiam dezenas de vezes no momento do pouso, descendo no tornozelo da vítima. Puxou o líquido viscoso para dentro de seu microorganismo, encerrando seu longo jejum, ao estufar seu abdômen.

O homem, internado no hospital para tratar de algumas doenças, sentiu uma coceira aguda por cima do lençol. Bateu a mão no joelho por previdência, o que acabou assustando a líder dos pequenos insetos alados, que levantou voo em retirada imediata. A mosquita passou pela fresta da janela do quinto andar do hospital, e recebeu uma forte lufada de vento que aumentou em muitas vezes sua velocidade final. Mesmo pesada pelo banquete que havia se servido, foi parar bem longe.

Entrou por uma nova janela na vizinhança, desta vez a duzentos metros do hospital, ao perder-se de sua rota corriqueira. Entrou num apartamento residencial. A mosquita encontrou um cantinho tranquilo para descansar. Camuflou-se em um móvel de madeira de cor escura. Ficou ali, quietinha por um dia inteiro, sem se movimentar, fazendo a boa digestão.

Na noite posterior, a mosquita voltou à atividade. No meio da madrugada, encontrou uma nova vítima. Pousou no braço de um homem idoso que dormia tranquilo, sugando todo o fluido que desejava sem ser incomodada. Terminada a comilança, pousou numa parede branca. E a tristeza retornou. Sentia-se muito solitária naquele lugar. Onde estavam seus parceiros de picadas do bloco A do hospital? Os mosquitos a as mosquitas não queriam só comida, precisavam da solidariedade de sua espécie; e de diversão, é claro.

Após três dias distante de seu grupo, a mosquita já sentia os efeitos de uma melancolia severa, devido à falta que sentia de sua comunidade mosquiteira. Nem as pernas fininhas de uma aranha, envolta em sua teia grudada no bidê junto à parede, distraía sua indisposição. A janela do quarto, fechada há muitos dias, não dava a menor chance para a sua escapada.

Já o velho, sua presa, acordou em uma manhã com estranhos calafrios. À tarde, dores no corpo, enjoos, febre de trinta e nove graus. O homem sentia que não estava bem. Ele foi ao hospital pertinho de casa, fez um exame de bastonete no nariz e uma coleta de sangue. Avisou aos familiares que tinha suspeita do vírus mortífero de sua época, o corona.

Na consulta médica, foi avisado de que era preciso ficar atento a algum sintoma de falta de ar. O doutor decretou: isolamento, muito descanso e um antitérmico a cada seis horas; mas podia ser outra infecção qualquer.

O resultado do exame saiu em dois dias: negativo para coronavírus. O velho seguia em péssimas condições físicas. Todos questionavam: ou se trata de um falso negativo ou é outra doença. Ao voltar para casa, tomou logo uma ducha e se jogou novamente na cama. A mosquita, já morrendo de fome, não esperou muito para de agir. Saiu da parede do quarto e começou a zanzar em volta da cabeça do doente.

Um zumbido intermitente, no ouvido direito do velho, o incomodava antes mesmo dele cair no sono. Malditos mosquitos! Deu um tapa ligeiro no ar, aleatório, na penumbra do quarto. O golpe foi certeiro. Avistou na palma da mão o rastro de sangue e o vestígio de uma mosquita bastante gorda, esmagada, com as asas retorcidas e o corpo listrado em preto e branco. O velho compreendeu o que poderia ter se passado. Se ele tivesse pegado uma simples dengue, estaria satisfeito, pensou. Podia ser isso.

Do outro lado da rua, no hospital, os mosquitos já discutiam o suposto óbito da líder do grupo. Jamais aquela mosquita havia saído, por mais de vinte e quatro horas, sem retornar. Algo estava muito errado. As buscas pelo hospital atrás da desaparecida não deram em nada. Seus filhotes choraram, e os mosquitos amigos de caçada se lamentaram com o seu provável fim.

A palavra de ordem era de que todos os mosquitos deveriam se mobilizar contra a sua atual irrelevância. E foi votada uma grande homenagem póstuma à mosquita, seguida da eleição de uma nova liderança. A vencedora perguntou em frente a todos, e com sinceridade:

- Será que foi mesmo a maldita espécie dos morcegos sanguessugas que trouxe esse tal coronavírus de alguma parte do mundo para cá?

Na dúvida, os mosquitos aprovaram uma moção de repúdio, mais uma operação de caça aos morcegos traidores como revanche. Concluíram a nova assembleia, com juramentos de união e fortalecimento de uma unanimidade:

- Mosquitada oprimida do mundo, uni-vos!


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