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O Segredo de Mariano

  • Foto do escritor: Ulisses Duarte
    Ulisses Duarte
  • 21 de ago. de 2021
  • 5 min de leitura

Atualizado: 21 de ago. de 2021


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Foram muitos meses sem avistar Mariano. Perguntei a alguns velhos conhecidos do bairro sobre o paradeiro do andarilho.

Mariano andava sempre sozinho, vagando por aí. Por mais estranho que isto pareça, nunca o tinha visto desleixado ou fedendo, como poderia ser comum entre os mendigos mais miseráveis. Para sobreviver, sua tática usual era constranger as pessoas na rua, contar parte de seus problemas pessoais, seguidos por visões paranormais fabricadas ali, olho no olho, e os recorrentes pedidos por alguns trocados. As maldições vinham à tona: doenças, mortes, acidentes, tragédias. O resultado disso era negativo para ele mesmo, já que muitos o evitavam com razão, pois o consideravam um golpista nato.

Certo domingo, reconheci Mariano do outro lado da calçada, quase da mesma forma que eu o vi no início da pandemia, quando ele desapareceu. Os cabelos estavam mais longos, compridos até os ombros, sendo as mechas repetidamente puxadas com os dedos para trás da nuca numa espécie de toque compulsivo. Estava com uma bolsa grande para guardar seus poucos pertences, usando bermudas jeans e sandálias, ao invés dos antigos sapatos mal cuidados.

Observei que Mariano estava seduzido por algum objeto a curto alcance. Ele circulava em volta de um pano estendido no chão da calçada, o mostruário de uma miscelânea de coisas de pouco valor expostos por um ambulante. Atravessei a rua tentando enxergar para onde estava fixada a sua atenção que não mais oscilava. Era um conjunto de livros mal organizados entre vasos usados, copos de vidro e outras quinquilharias. Mariano agarrou uma obra de formato avolumado, de capa vermelha, e tirou de um compartimento de dentro de sua bolsa algumas moedas. Pagou o homem que vigiava aquele comércio de rua improvisado. Seguiu pela calçada, analisando o conteúdo impresso nas páginas.

Admirei-me com o fato de encontrar Mariano mergulhado em um livro. Comecei a segui-lo, e tracei uma estratégia para estabelecer algum contato. Julgava que ele não mais me reconheceria. Não precisei me esforçar. O próprio Mariano virou-se em frente à fachada de um comércio movimentado, e iniciou suas tradicionais solicitações aos pedestres.

- Oi, amigo, poderia me ajudar? Ainda não almocei – ele iniciou o pedido com sua saudação de costume, quando chamava a todos pelo afetivo “amigo”.

- Oi Mariano. Quanto tempo não o vejo por aqui?

Mariano se surpreendeu ao ser chamado pelo nome. Não deu indícios de que me reconhecia da região. Enrolou-se ao tentar colocar o livro dentro da bolsa, com zelo de quem guardava um bem de grande valia.

A suposta capacidade mediúnica de Mariano surgia a cada parada de olhar ao redor. Tomava grande fôlego para falar, como se tivesse envolvido em alguma meditação solitária, que era quebrada por um fluxo intenso de ideias que se encadeava logo em outro, com reflexões nas quais ele investia grande concentração. O mundo ao redor desaparecia quando ele reverberava suas tolas verdades:

- Sabe, amigo, todos estão numa prisão, mas não é a penitenciária que a gente está acostumado– ele frisou – a gente vive neste mundo material achando que tudo isto é o certo, mas estamos mergulhados na aparência do que é a realidade. O que nós acreditamos só faz sentido em nossa cabeça e na de alguns poucos que dividem com a gente essa ilusão. Muitas vezes por uma forte crença mentirosa, por vaidade ou pela mais absoluta ignorância. A verdade é que o que você tá vendo, eu, Mariano, minhas coisinhas aqui, não passam de algumas sombras e formas que não estão nem perto de nossa essência. A alma está para além de nosso corpo, o olho, o cheiro, a fome... A verdade de Deus está para além do que entendemos. Somos tão limitados e sempre tão arrogantes. Somos só um pouco mais inteligentes que um animal primata em meio à natureza selvagem. Não somos muito mais que isso, não. Somos um grande nada que está indo para lugar nenhum! – respirou forte, e anunciou - Estou escrevendo um livro sobre isto – e voltou a silenciar.

Quebrei a sua pausa com uma constatação:

- Vejo que você é bom em conversar com as pessoas, e sempre consegue arrumar as coisas que precisa. Você poderia ensinar muita gente com seus textos, poderia tentar sair da situação das ruas, não acho legal para você ficar nesta...

Mariano me interrompeu para dizer que não era bem assim. As ruas para ele significavam a sua mais completa liberdade. Falar com as pessoas alheias, sentir o passar das horas do dia num ritmo mais lento, contemplar um simples fim de tarde de sol, e até o voo dos pássaros que rodopiavam sobre os prédios cinzas da cidade anunciando a chuva. Contou-me que esse era o segredo de seu viver, aproveitar cada segundo como se fosse o último, expandindo as amarras de nossa prisão aqui da terra, tentando observar o que o tempo tem de divino, para além da nossa vidinha cotidiana.

Foi neste momento que eu fiz uma proposta:

- Traga o que você escreveu. Posso revisar seu texto, quem sabe arrumar um editor para uma publicação, o que acha?

Mariano contorceu o rosto como se eu tivesse tido uma péssima ideia. Falou que o livro ainda não estava pronto, mesmo que já estivesse há alguns anos trabalhando em cima do que ele chamou por cadernos de pensamentos. Disse que eram alguns esboços ainda não finalizados. E não andava com os escritos nas ruas com medo de perder suas páginas, já que elas continham, em suas palavras, parte de seu espírito.

Concordou em pensar no assunto, mas com bastante calma. Frisou que não iria me prometer nada, antes de tomar uma decisão final. Então, passou a pedir-me ajuda, como de costume. Neste dia, o pedido era de somente dez reais para comprar uma marmita. Eu disse a ele que estava com pouco dinheiro. Ele insistiu e fez a sua contraproposta; se eu conseguisse os dez reais, ele me emprestava o livro recém comprado.

Acabei aceitando a oferta. Puxei do bolso a nota de dez e alcancei a ele. Mariano festejou a conquista, e tirou da bolsa o volume de capa vermelha que revelou o seu título em letras garrafais, passando para minhas mãos: Fundamentos da Filosofia Clássica – volume 1. Achei o título muito sugestivo, depois daquela conversa.

Cumprimentou-me, deu meia volta, e seguiu seu caminho.

Com o passar dos dias, continuei suspeitando de todo o enredo narrado por ele. Mariano realmente escreveu alguma coisa de suas experiências de rua e de seu misticismo? E se tudo aquilo não tivesse passado de mais uma invenção de sua cabeça, dada sua desconexa condição mental. Ou se era mais uma artimanha para seus golpes diários em busca de alguns trocados para sobreviver?

Estou certo de que, pelo menos, Mariano possui algumas qualidades que o distinguem: ele é muito persuasivo. E um excelente contador de histórias.

Imagem: https://br.freepik.com/fotos/pessoas". Pessoas foto criado por jcomp - br.freepik.com

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