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O Piranhão do Velho Estácio

  • Foto do escritor: Ulisses Duarte
    Ulisses Duarte
  • 15 de mai. de 2021
  • 7 min de leitura

Atualizado: 16 de mai. de 2021


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Marco Antônio partiu de ônibus com seus dois parceiros fiéis, Cadu e Maninho, numa missão desafiadora: pegar sua encomenda no mais sinistro submundo da cidade, localizado nos limites do bairro do Estácio com a Cidade Nova no Rio de Janeiro.

Era a primeira vez que iria buscar a mercadoria, considerada da boa entre os usuários, já que o dono do ponto havia lhe negado o serviço de delivery. O motivo não era nada animador. Depois de uma grave invasão inimiga nos dias anteriores, a boca perdeu alguns rapazes da linha de frente, os famosos vapor, para o cemitério do Caju. Todo moleque sobrevivente, bastante amedrontado, acabou tirando uns dias de descanso para baixar a poeira.

O pedido de Marco Antônio não era nada abundante, apenas três punhados de erva e umas gramas de brilho, bagulho reservado por telefone para ele e os dois amigos que o acompanhavam. Os parceiros da boemia noturna se esparramaram no fundão do busão depois de passarem por baixo da roleta, para a tensão dos demais passageiros que suspeitavam de mais um assalto a mão armada, fato costumeiro depois das dez da noite naquela parte da cidade.

Marco Antônio se considerava um tanto simpático, apesar da vulgar magreza e dos cabelos sempre desgrenhados. Maninho sorria com uma grave ausência dos dentes da frente. Cadu, preto retinto, portava um bigodinho fino e usava uma corretinha banhada a ouro que gerava a maior desconfiança por onde passava. As caretas nervosas das tias sentadas no meio do veículo denunciavam o terrível medo de serem as próximas vítimas dos três elementos. Elas viravam suas cabecinhas protuberantes para trás para analisar cada movimento, rezavam ave-marias baixinho, e não tentavam disfarçar a enorme preocupação com a presença dos parceiros de farra no mesmo coletivo.

Os três rapazes faziam troça do entra e sai de trabalhadores voltando da lida diária. A vida de otário era composta por um esforço mal pago nas tolas rotinas de muita exploração laboral e dureza. Falavam alto, para todos ouvirem, como era fácil viver suas vidas à toa na zona norte de malandros e desocupados. Sobreviviam da xepa do comércio e da boa vontade dos parceiros de rua, sem as preocupações banais do dia a dia.

O fato é que os três parceiros viviam pelas bordas da cidade sem fazerem maldades a terceiros. Queriam apenas buscar o prazer sem fim das noites cariocas, pouco importando se fosse dia da semana, domingo ou feriado. A regra fundamental era curtir até o fim.

O ônibus se aproximava do ponto planejado para a descida antes mesmo da estação Central do Brasil. Poucas quadras depois da curva perigosa do viaduto, que chacoalhou os passageiros agarrados nos ferros da nave, o ônibus parou bruscamente, e despejou o trio no meio da pista, para alívio das tias receosas. Ainda chovia fraquinho na cidade.

Da avenida Presidente Vargas podia-se enxergar a entrada da rua; uma linha sinuosa de sacos de lixo, o entra e sai de viciados e as banquinhas de lanche que apareciam na madrugada, e que serviam de fachada para as entregas a varejo da droga. Grandes outdoors cobriam o conjunto de cortiços daquela zona para os veículos que passavam pela avenida. O que havia do lado de dentro das ruelas, pouca gente sabia. Havia uma barreira de muros e painéis comerciais abandonados pela Prefeitura, ajustados à risca na lateral da via para tapar toda aquela vergonha alheia dos cidadãos de bem que transitavam pela grande avenida.

Os três parceiros cruzaram a entrada da zona mista dos pequenos traficantes, das prostitutas e dos aprendizes de criminosos. A placa que identificava a rua se dependurava na extremidade de um poste torto e quebrado na metade, onde se lia Rua Pinto de Azevedo. Para os usuários do local, o nome mais conhecido era outro: a mais famosa zona da cidade, o Piranhão.

Ao entrar na região do Piranhão, região que ficava a apenas algumas centenas de metros da Prefeitura, podia-se perceber uma sequência de casas geminadas com portas de entrada direto para a calçada, construídas antes mesmo das seguidas reformas urbanas cariocas. Essas casas populares serviam de point para o serviço das garotas de programa de cachês irrisórios, agenciadas pelos mais medíocres cafetões da pátria, muito deles trabalhadores da segurança pública.

Marco Antônio, estreando naquela noite no Piranhão, ficou encantado com as meninas que circulavam nas calçadas e se exibiam em roupas íntimas e insinuantes decotes, na soleira da porta das casas, convidando os clientes que circulavam pelas ruas a olhar além das frestas, convidando-os a entrarem para uma festinha particular. Luzes vermelhas dentro das salas, forró e música romântica se confundiam nas muitas caixas de som, somavam-se ao barulho dos saltos altos das mulheres borradas de batom vermelho. O trabalho do amor não era tão fácil, como popularmente se pensava.

Os parceiros combinaram que apenas um deles iria buscar o produto encomendado na casa sessenta e três, que ficava ao fim da quadra, para não perderem muito tempo dentro da área considerada de alto risco. Cadu foi o selecionado, já que era o mais rápido, e por conhecer de antemão o ponto de entrega do bagulho. Juntou o dinheiro dos três, que somava um pouco mais do que o necessário, e se enfiou na zona que mais parecia o purgatório da Terra.

Maninho e Marco Antônio se acomodaram no meio fio da calçada, ao lado de uma carrocinha de pipoca. O proprietário da carrocinha ficava de prontidão para dar informações aos transeuntes sobre as melhores boites daquele pedaço, além de dar o primeiro aviso de perigo aos moleques-vapor que faziam o comércio a varejo dos produtos vendidos.

Mais de vinte minutos de espera, e nada de Cadu retornar. Maninho desconfiava que alguma coisa estava errado. Marco Antônio pensou em ir atrás do parceiro até o final da quadra. Mas não precisou se antecipar.

Os dois parceiros na entrada da rua ouviram um grito de socorro de um espectro vindo em sua direção na metade do quarteirão. Era Cadu, em passadas largas e em velocidade de pantera, suplicando aos amigos para fugirem para bem longe. Ele abria espaços na calçada empurrando as mulheres da vida e tentando fugir de outro homem que vinha, ao fundo da rua, com um revólver na mão em sua perseguição. As prostitutas gritavam palavrões nas janelas e pediam para que o homem armado resolvesse logo o problema com o fugitivo. O alvoroço poderia espantar a clientela. Assim que Cadu foi se aproximando do ponto de encontro, Maninho e Marco Antônio perceberam que o parceiro corria pelado, segurando a calça e a camisa surrada que usava.

Maninho foi o primeiro a perceber o perigo e se lançou em fuga para uma rua lateral em direção ao Largo do Estácio. Marco Antônio e Cadu correram atrás dele. Os três comparsas correram tanto até suporem que o risco tinha passado, depois de três ou quatro quadras escuras. Atiraram-se no asfalto de uma esquina qualquer para recuperarem o fôlego. Marco Antônio, furioso com Cadu, pediu explicações do que acontecera e por que ele estava pelado em meio à zona. Cadu, vestiu-se de novo com a calça e a camisa, e contou que se encantou por uma loira bonita. Num impulso achou que o valor que trazia no bolso pagaria a encomenda dos parceiros, e sobraria, para mais uma rapidinha com a loira atraente.

Era uma loira de minissaia rosa, cabelo mal pintado que revelava o castanho escuro da raiz, e que trazia marcas fortes das rugas que denunciavam muito mais do que seus quarenta e cinco anos. Ela estava em frente ao local de entrega da encomenda, na hora de sua chegada, e o chamara para conversar. Cadu insistiu que a cabrocha era muito gostosa, apesar de todas as controvérsias faciais. As pernas eram lisas e bem delineadas, e o bumbum tinha tamanha volúpia que o deixara embasbacado.

Foi assim que ele pulou para dentro do quartinho da pensão, que além da moça também eram servidos pela senhoria petiscos, cervejas e pratos comerciais. Ele aceitou o convite da loira para entrar num quarto escuro e um pouco fedorento. Em pouco tempo, conseguiu chegar ao ápice, numa apoteose de prazer carnal demasiadamente humano. Quando foi pagar o serviço, já com a encomenda do bagulho em sua posse, percebeu que o dinheiro não dava para arrumar nem a encomenda da casa. O cálculo saiu pela culatra. Cadu sempre foi muito ruim de Matemática.

No meio da discussão sobre como iria pagar com o grandalhão que fazia a segurança, evadiu-se do local e começou a correr pela rua entre os maus elementos e as meninas das casas. Conseguiu fugir com a mercadoria nos bolsos. Foi assim que tudo aconteceu. Agora que tinha passado o desespero, abriu um pacotinho da verdinha, ali mesmo no meio do Estácio, e começou a triturar a primeira porção da erva para botar para dentro do corpo em forma de fumaça.

Enquanto Cadu contava a história de sua fuga, Marco Antônio percebeu a aproximação de uma patrulinha da polícia militar dando a volta na esquina. Os flashes das luzes do teto pipocavam no chão da via e batiam na fachada suja da zona residencial e silenciosa do bairro, bem longe do agito das ruas do Piranhão. Não tinham mais como fugir dali.

Dois policiais desceram da viatura anunciando a batida. Cadu jogou o produto para Maninho dar uma pitada, e tentar esconder, antes que os três parceiros anunciassem sua rendição aos homens da lei. Sentado no fundo do carro da polícia, estava o brucutu que dava segurança à pensão sessenta e três, local de retirada da encomenda, além da loira de minissaia rosa.

Resultado final da aventura ao Piranhão naquela noite: Cadu apanhou tanto do brucutu que restou a ele um olho roxo, uma costela quebrada e uma fratura na mandíbula. Maninho teve que entregar o que havia sobrado do dinheiro que tinha em sua carteira para ser esquecido, além de todos os pacotes da encomenda que foram para sempre sequestrados pela polícia. Marco Antônio tomou apenas um forte tapa no pescoço quando suplicava para deixarem Cadu em paz. E de quebra teve que ouvir da loira de minissaia alguns sussuros no ouvido em meio à confusão. Ela o esperava para uma massagem relaxante depois de todo aquele stress desnecessário.

A loira faria um bom precinho com um belo desconto a Marco Antônio, em caso de afirmativa.

Nenhum boletim de ocorrência foi registrado naquela noite. Os três amigos juraram que nunca mais iriam retornar a frequentar o Piranhão. Promessa que, obviamente, não fora cumprida. Não se passaram muitos meses dali em frente, e estavam novamente embrenhados os três parceiros no nobre submundo do velho Estácio. Até parece que gostaram dos prazeres encontrados naquele celebrado submundo carioca.

Vai saber? Pelo menos o bagulho, diziam, era muito bom. Imagem: <a href='https://br.freepik.com/vetores/cidade'>Cidade vetor criado por vectorpouch.

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