O Filho do Homem Célebre
- Ulisses Duarte

- 16 de jan. de 2023
- 4 min de leitura

Foi o segurança de um mercadinho da esquina que me contou que aquele homem tresloucado, que vivia arrumando encrenca na rua, era filho de um artista muito famoso, uma celebridade do mundo televisivo brasileiro. E mais, diziam que da Rede Globo de Televisão. O pessoal dos prédios o conhecia por Zezinho, um inveterado desocupado, o bom vivant que vivia das rendas de aluguéis, e provavelmente de mais alguma pensão ajeitada pelo pai provedor.
Avistava Zezinho perambulando pelas calçadas, marcando sua presença constante no espaço público do bairro a qualquer hora do dia. Quase sempre com alguma agitação motora, olhar fixo e traiçoeiro, uma falação aleatória na passagem de qualquer morador. Com certeza tinha mais de quarenta e cinco anos, pelas minhas contas, já que trazia em cima da cabeça enrugada um topete grisalho empinado na beirada da testa, sempre desgrenhado, denunciando uma idade já um pouco distante da primeira juventude.
O que se dizia era que Zezinho era um filho bastardo gerado numa transa descompromissada de verão, fora do casamento, na longínqua década de 60. A mãe de Zezinho, pasmem, uma ex-chacrete. E ele vivia sozinho no prédio mais ajeitado daqui da rua. Nada de muito luxuoso, porém, localizado na cobertura de quatro dormitórios do prédio, com direito à piscina própria, com vista livre para a praia.
Zezinho tinha raros momentos com o pai, o tal homem consagrado que o via duas vezes ao ano, no máximo. O filho andava sempre largado, sandálias baratas com regatas rasgadas, que acumulavam algumas camadas de crostas de sujeira, o que deixava as pessoas enojadas.
Certa vez, o segurança do mercadinho confessou que recebia uma verba extra a cada mês para ficar de olho no excêntrico, quantia que era depositada sem atraso pelo seu pai poderoso. E ele não era o único que tirava uma graninha para zelar pelo boa vida. Tudo isto com total discrição e confidencialidade, para não vazar toda a situação na mídia sensacionalista que gostava de fofocas de celebridades, sobretudo das Globais.
Foi no final do ano passado que, ao entrar em minha rua, percebi um grupo de pessoas amontoadas em frente à calçada, acompanhadas de uma ambulância e duas viaturas da PM. No meio da parede humana de curiosos, enxerguei aquele topete grudento com sangue escuro na ponta e o olhar pregado comum dos viciados. Zezinho recebia os primeiros socorros e era colocado numa maca. Ele balbuciava à equipe de socorristas que queria se matar.
Encontrei o segurança em meio ao enxame de gente, e ele me confirmou que havia sido mais um surto do homem, seguido de um piripaque daquele louco da cobertura. O motivo: descobriu-se que o pai de Zezinho, o homem célebre, havia falecido há alguns dias.
Ao receber a notícia da morte do seu velho, Zezinho entrou num redemoinho de desespero, com o consumo de aditivos químicos, seguido de sessões de quebra de objetos dentro de casa, chegando a lançar parte dos móveis pela janela do apartamento. Alguns condôminos chamaram a polícia. Ele tentou cortar os pulsos com uma faca de cozinha, muito mal afiada, e desmaiou momentos antes de arrombarem a porta de sua moradia.
O novo órfão da cidade de um pai muito distante, porém, de alta estirpe, trouxe marcas profundas para o restante da vida Zezinho. Ele ficou mais de um mês trancafiado num quarto de hospital, e recebeu a visita de alguns poucos parentes distantes em busca das notícias sobre o testamento deixado pelo velho.
Depois do acontecido, Zezinho se recuperou bem e ganhou alta do hospital após algumas semanas. Encontrei Zezinho na calçada em seu retorno ao nosso convívio. Saindo do metrô, de camisa de botão, calça jeans e sapato fechado. Limpo e de barba feita, sendo acompanhado por uma mulher e uma menina desconhecida. Ele, pela primeira vez, cumpria o papel de um homem de família: voz empostada, segurança ao falar suas tolices, e cabeça em pé de um cidadão que pagava seus impostos em dia.
Zezinho estava compenetrado. Sem o antigo andar displicente, os xingamentos de baixo calão que proferia e as roupas surradas. O segurança do mercadinho fez a mim uma confissão: encontrava o maluco no salão de sua igreja evangélica, orando e contribuindo para as ações comunitárias do pastor das redondezas. Zezinho se tornou o mais obstinado crente, arrumou uma parceira amorosa e uns trabalhinhos de biscate como corretor de imóveis por aí.
O novo Zezinho não durou muito no Brasil. Descobri que ele tinha alugado a sua cobertura a um preço abaixo do valor de mercado, e rumado para morar fora. Levou sua nova namorada e uma dívida antiga com o pessoal da boca de fumo. Carregou uma grana da herança, coisa de mais de um milhão de reais e partiu para viver na Europa. O destino, uma praia quente do Mediterrâneo. Sumiu.
O nome de seu verdadeiro pai a mim não foi revelado, apesar de que eu tenha dois ou três bons palpites. Da mesma forma, as ruas do bairro nunca mais foram as mesmas. Zezinho, por mais difícil que tenha sido a convivência com a vizinhança, deixará um pouco de saudades. O dinheirinho que o segurança recebia para vigiá-lo, e o dízimo recebido pelo pastor, pelo menos, farão bastante falta.
O bairro não será mais o mesmo.
Imagem: Gauguin. Autorretrato os Miseráveis.






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