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O Coronavírus e o Vizinho de Cima

  • Foto do escritor: Ulisses Duarte
    Ulisses Duarte
  • 29 de dez. de 2020
  • 3 min de leitura

Atualizado: 12 de jan. de 2021



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O vizinho que mora em cima está com suspeita de coronavírus.

Eu mal o conheço. Pouco lembro de sua fisionomia, já que só trocamos pequenos cumprimentos diplomáticos na saída do prédio. Ele mora no sétimo andar, bem em cima de nossas cabeças. Então, vocês pensam, como eu sei que ele está infectado pelo vírus mais alucinante do século XXI? Digo: ouço quase todas as conversas do vizinho pela janela basculante do banheiro e pela janela de fundo da cozinha.

Não que eu seja fofoqueiro ou curioso demais. A voz reverbera pelas paredes internas do prédio, num fosso escuro e sombrio, e entra diretamente nas minhas janelas. Escuto quase tudo pelo eco perfeito que bate no concreto.

Do vizinho, sei bastante. Já acompanhei a época de seu casamento – passaram-se três anos - a adoção de seu cachorrinho, as viagens de final de ano e as calorosas recepções dos familiares que moram em outra região do país. O papo agora mudou.

Desde quarta-feira ele fala o tempo inteiro sobre seus sintomas: a falta de ar que ele sente aos fins de tarde, as dores no corpo e seu cansaço constante. Eu ouço sua tosse seca forçada, e torço para que a corrente de ar que percorre meu apartamento não traga os microrganismos vivos direto aos meus pulmões. Enxergo até as partículas de pó em formato de coroa no ar. Despertou minha neurose, eu sei. Vou falar a verdade, estou mantendo algumas das janelas fechadas, e olha que faz calor, além de estar medindo minha febre duas vezes ao dia pelo menos.

Sei que o vizinho de cima tem certeza que pegou o corona no trabalho, uma agência de viagens da zona sul carioca, e que ele ficará ao menos uma semana de repouso. A única pessoa que tem contato com ele é a sua esposa, que passa os dias em seus cuidados intensivos. Aí que vem a parte mais intrigante.

Antes da doença, meu vizinho de cima estava em processo de divórcio de sua atual cônjuge. Aqui embaixo, eu ouvia as brigas intermináveis, as discussões bobas e sem lógica (para quem as escuta de fora), e os choros após as várias ameaças de separação. Coisas de casal em guerra. O coronavírus trouxe um efeito reverso. Ouço ele a chamando de amor, pedindo por favor, e preocupando-se com os interesses dela e do seu bem-estar, algo ultimamente raro.

Ao pegar o elevador ontem à noite para ir ao mercado, deparo-me com a bendita dentro do compartimento público mais contagioso do mundo, justo na minha descida. Juro que a não reconheci de pronto. Quando ela mandou uma mensagem de áudio no seu celular, reconheci-a pela voz. Prendi o ar dos pulmões e fiquei gelado da cabeça aos pés. Quando a porta abriu no térreo, soltei a respiração e agradeci aos anjos protetores pela boa hora. Mas não me segurei. Já numa distância segura, perguntei:

- Como vai meu vizinho? Tudo melhor? É corona mesmo?

A esposa do vizinho de cima respondeu com uma risada fingida.

- Que nada. É covarde vírus. Desde que eu mandei ele embora de casa, ele me veio com esta. Ele quer que eu o perdoe. Jura que está doente. Seu vizinho vai ter que se mudar em breve viu. E você, ainda está naquele trabalho em Niterói, na Universidade? E sua mãe do sul, voltou bem? E os estudos?

Fiquei mudo. Não sabia que o eco tinha mão dupla e a minha voz ricocheteava de baixo para cima. Vou ter que me precaver, falar mais baixo daqui para frente e pensar em usar códigos secretos para assuntos confidenciais na minha própria casa. Absurdo.

É o efeito do surto coletivo dos nossos tempos. Como uma epidemia.

O que nunca nos falta é excesso de informação. Nós perdemos a medida. Acabou-se qualquer possibilidade de intimidade alheia aos outros, que digam nossos vizinhos.

Viralizamos.

Imagem: "Saúde vetor" criado por freepik - br.freepik.com

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