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Nunca Atravesse no Sinal Vermelho na Alemanha

  • Foto do escritor: Ulisses Duarte
    Ulisses Duarte
  • 12 de jan. de 2021
  • 4 min de leitura

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Estava há poucas horas na Alemanha. Vou ao mercado. Na saída, sinal vermelho para pedestre, o central aberto para os carros. Nove da noite, cinco graus, e caindo uma garoa gelada, acompanhada por um vento cortante. Parado no cruzamento de uma avenida. Nenhum veículo no horizonte, pista vazia nos dois sentidos. A chuvinha fina batia no meu pescoço. Aguardo com as compras presas nas duas mãos na esquina.

Dou o primeiro passo para dentro da faixa de segurança, não iria esperar abrir o sinal para pedestre, não fazia sentido. No canteiro do meio, assistindo meu avanço em sua direção, percebo uma senhorinha pequena de cabelos acinzentados esbravejando em minha direção, com grande disposição. Olho pra trás, suspeitando que a dura era para outra pessoa. Não havia ninguém. Passo por ela e vejo, de relance, a expressão do seu rosto retorcida de raiva ao desandar a gritar, em minha direção, mais palavras rudes naquela língua incompreensível. No meio da vociferação, ouço uma sequência da única palavra que eu sabia traduzir: “Nein! Nein, Neeeeeiiinnnn”.

Essa palavra era fácil de entender: tratava-se do bom e o velho NÃO. Duvidoso de que estava, estranhamente, depois de muitas horas de voo, tomando uma dura de uma velhinha desconhecida que tinha na boca um monte de consoantes ríspidas. Foi o cartão de boas-vindas daquela cidadezinha chamada Bonn, no oeste alemão. Juro que não compreendia o que havia de errado comigo naquele momento. Cheguei a checar até a braguilha da calça para ver se ela não estava aberta. Ao cruzar a esquina, lembrei do aviso de meu amigo brasileiro, morador daquela cidade alemã, já há dois anos:

- Nunca atravesse o sinal quando estiver vermelho para o pedestre, mesmo se não estiver vindo algum carro, moto ou bicicleta. Eles odeiam que quebrem as regras!

O espírito civilizatório alemão tem destas coisas. Alguns anos antes, em Berlim, cheguei ao guichê na rodoviária e perguntei diretamente em inglês ao homem que estava ali de campana, quase como um soldado na trincheira da Primeira Grande Guerra. Era algo simples do tipo: “Que horas sai o ônibus para a cidade tal?”. O grande sujeito louro de olhos azuis me olhou de cima a baixo, atrás do vidro de proteção, e grosnou alguma coisa em alemão. Não entendi a mensagem, como sempre. Voltei a pedir explicações perguntando, bem despretensioso, se ele sabia falar inglês para me ajudar. “Do you speak english, Sir?”. Foi aí que ele respondeu, no mais perfeito inglês que eu tinha ouvido naquele país:

- Você acha que eu sou um idiota? É claro que eu sei falar inglês. Você está no meu país e é tão estúpido que não entende nem as horas em alemão.

Levei uns cinco segundos para compreender que estava sendo enxovalhado no meio do saguão da rodoviária principal de Berlim. Não consegui responder a ofensa. Primeiro, pensei que se tratava de alguma brincadeira, um quadro humorístico do programa câmera escondida. Quando compreendi que era mesmo um insulto gratuito, virei as costas, depois de balbuciar um monótono “thank you”, e saí logo de perto.

A forma como o povo local compreende a vida coletiva em sociedade, cumprindo à risca com o seu dever de cidadão casmurro, muitas vezes beira a mais radical vigilância.

Outrora, viajando num trem rápido de Frankfurt a Colônia, o silêncio era tão perfeito no interior dos vagões, que ouvíamos apenas o ruído delicado do folhear das páginas de jornal de um leitor no final do corredor. As pessoas cochilavam, ouviam músicas em fones bem plugados nos ouvidos, ou simplesmente ficavam em silêncio, olhando a bela paisagem do vale do rio Reno. Muito raramente ouvíamos conversas discretas entre os passageiros.

Naquele dia, como não conhecíamos a cidade de destino, tive que trocar mensagens por aúdios de whatsapp com o casal de amigos que nos aguardava na plataforma de uma das estações. Tentava falar o mais baixo possível em cada envio de mensagem, quase perdendo a voz nos cochichos. Não obtive sucesso. A cada vez que eu começava a sussurar alguma coisa no telefone, um grupo de mulheres de meia idade olhava para trás, em direção às nossas poltronas, como se estivessem muito incomodadas com o meu falatório. Quando eu tive que me alongar um pouco mais, numa explicação sobre o ponto da ferrovia em que estavámos, a fim de nos localizarmos, uma das mulheres torceu a cara para o nosso lado e, botando em riste o dedo indicador entre os lábios, silvou:

- SHHHHHHHHHHHHHH!

Este foi o pedido para calar a boca mais injusto que já vivi na pele.

Em outra oportunidade, também em um trem alemão com nossos amigos, o silêncio absoluto começou a ser quebrado por um barulho muito inusitado. Uma adolescente dormia pesado na parte da frente do vagão, quando o smartphone dentro de sua mochila, encostada no apoio de braço de seu assento, começou a vibrar. A vibração do telefone, junto ao suporte de metal, fazia um barulho atípico como uma chave trincando em uma superfície metálica. Percebi que as pessoas nos assentos próximos de onde estávamos começaram a se irritar. E isto logo na segunda tentativa de chamada para a menina. Na terceira ou quarta nova tentativa de chamada sem sucesso, veio a reação abrupta àquele barulho mínimo, porém infernal para alguns. Um passageiro, incomodado com a quebra do silêncio, levantou-se de seu lugar e foi até o assento da moça. Começou a cutucá-la até fazê-la despertar.

A menina, meio grogue de sono, recebeu a reclamação de seu barulho indevido, abriu a mochila e desativou o modo vibracall do aparelho. Depois disto, virou-se para todos a bordo e acenou para o corredor, num gesto educado com as mãos, pedindo as mais sinceras desculpas. Duas estações depois, a menina ainda um pouco encabulada, em razão do pequeno estorvo por ela causado, agarrou-se à mochila e desceu do trem para a plataforma.

Uma senhora ao nosso lado arfou com os lábios e disse, aliviada, para o meu amigo:

- Gott sei dank.

Eu logo perguntei, bem curioso:

- O que foi que ela disse?

Meu amigo sorriu, e contou-me, um tanto embaraçado dada a pouca tolerância de seus conterrâneos:

- Graças a Deus!




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