Dona Glória e a Televisão
- Ulisses Duarte
- 27 de jan. de 2023
- 2 min de leitura
Atualizado: 28 de jan. de 2023

O porteiro do prédio tentou avisar. Interfonou para o meu apartamento no início da tarde, e alertou:
- A Dona Glória tá subindo no seu andar. E está surtada! Cuidado. Disse que você é o responsável pela tevê da sala dela que está pifando – depois de mais de um ano de paz, não acreditei que o terror havia voltado. Que história era aquela?!
Para quem não conhece Dona Glória, explico, é minha vizinha de baixo. Portuguesa, solitária, agressiva, paranoica e desbocada. Tenham muito desprazer em conhecê-la. Sempre, eu disse s-e-m-p-r-e, ela inventa algum problema na sua unidade para dizer que eu sou o responsável por tudo: o barulho da reforma no prédio ao lado, um vazamento fantasma no banheiro, o elevador que enguiçou, a pia que entupiu...
Os males da sua existência medíocre e inútil são obras minhas. Segundo o seu delírio, eu recebo um cachê de sua nora (“aquela vagabunda”), para tentar destruir a sua vida. Imagine o tanto que ela arruma de problema em sua própria família.
A primeira martelada que ela deu na minha porta de entrada avisou-me que era realmente tudo verdade, bem antes da campainha tocar. A mensageira do caos voltou.
Abri a porta. Dona Glória continuava com uma bela disposição em infernizar minha vida. Os mesmos óculos amassados no rosto, o mesmo linguajar chulo e cheio de acento ríspido da boa terrinha lisboeta, o martelo na mão e os braços gordinhos, de quem adora arrumar encrenca por onde passa. Abri a porta inteira e fiquei a dois metros da velha.
Ela me olhou com muita raiva no coração, e destilou a maldição:
- Você não vale nada mesmo, porcaria! Por que estragou minha tevê? Vai para o raio que o parta! – o tom era de confusão mental e muita petulância.
- Dona Glória, eu não tenho nada a ver com isso. É um problema da sua casa e da sua televisão... – tentei raciocinar, com alguma calma, observando o martelo da velha em punho, guardando uma posição defensiva em caso de emergência.
- Tem a ver sim, seu cafajeste! Você veio da Pavuna para aqui, encher o saco... – não sei ao certo de onde tirou a Pavuna da cartola, mas acredito que tenha sido um xingamento, com muito preconceito de classe.
- Eu não sou da Pavuna, eu sou daqui. O que eu tenho a ver com sua tevê dentro da sua casa – reagi, com argumentos, e aumentei o tom de voz.
- Ah, é. Você é daqui? Eu sei que você arrumou uma mulher na Lapa e veio morar na casa dela. Aquela piranha! – Eu moro sozinho, mas Dona Glória insiste em dizer que eu escondo uma mulher da vida. E virou as costas pela primeira vez, se afastando pelo corredor do prédio.
Tentei tranquilizá-la:
- Já falei com seu filho pelo telefone. Ele vai ligar para senhora. Resolva com ele. Boa tarde para senhora.
A danada, antes de entrar no elevador, retrucou:
- Boa tarde o cacete. Qualquer hora eu arrebento a tua porta de novo.
E assim terminou o primeiro episódio da nova complicação que arrumei com Dona Glória. Infelizmente, não terminou por aqui...
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