Dona Glória, A Vizinha do Apartamento de Baixo
- Ulisses Duarte

- 29 de dez. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 21 de abr. de 2021

A vizinha do apartamento de baixo é uma ranzinza senhorinha solitária portuguesa de mais de oitenta anos. Da cidade de Lisboa, diz ela. Com infortúnio, de onde dizem que vieram parte de meus antepassados.
Uma sinistra infiltração de água em frente a privada no seu banheiro é o tema frequente de sua implicação com a gente. A cada três meses mais ou menos, uma torrente de água suja desce pelo alçapão de seu teto e inunda o piso de sua sala de banho. Ela enlouquece com os malditos moradores de cima, nós, mesmo sem ter motivos para tal. Interfona desesperada para o porteiro Severino, chama aos gritos a síndica Louise e, como se o prédio estivesse indo abaixo, culpa toda nossa linhagem até o quarto grau de parentes colaterais por nosso vazamento de água considerado culposo com motivos fúteis.
Já chamamos um técnico hidráulico, fizemos duas revisões nos canos do nosso banheiro que desce para o apartamento vizinho, ficamos de prontidão a cada visita, inundamos nosso banheiro de água para testar os canos que poderiam estar enferrujados, e nada. Não conseguimos achar os motivos da infiltração. Ninguém descobre da onde vem, nem o porquê do vazamento. Parece uma coisa de karma de outras vidas.
Ontem à noite ocorreu o problema novamente. A senhorinha inicia com ofensas pouco respeitosas gratuitas e acaba por tecer ironias e sarcasmos, duvidando de nossas benfeitorias e nossa real tentativa de resolução cirúrgica do problema.
A velha do andar de baixo seguiu o rito formal dos encontros anteriores. Nos chamou ao seu apartamento para mais uma vez verificarmos o vazamento e nos dissuadir de que era questão de vida ou morte. Depois disto, ao duvidar de nossa palavra sobre a ausência de indícios de corrimento de água de nosso banheiro, pediu para subir ao nosso apartamento e ver com os próprios olhos se não estávamos mentindo.
Ao verificar que estávamos impossibilitados de detectarmos a causa do vazamento, pois o banheiro estava sequíssimo, a miserável pediu primeiro para quebrarmos nosso piso e tirarmos o vaso sanitário do lugar; e se possível, deixarmos de usar os pontos de água no banheiro por um tempo. Sugeriu que déssemos um tempo à torneira da pia, à descarga da privada e ao chuveiro do banheiro. Simples.
Com aquela proposta obscena, baixou em mim por alguns momentos o espírito vulgar de Raskólnikov, protagonista de Crime e Castigo, que resolveu seu problema com a sua velhinha exploradora de maneira vil e repugnante: mão, raiva e machadadas.
Respirei fundo para não perder a linha. Nunca chegarei às vias de fato. Tenho juízo e um pouco de compaixão. Confesso que tentei não transparecer a indignação na resposta. Disse à velhinha que era melhor ela nos ajudar a identificar o problema, já que estávamos reunidos para um pacto de paz e a correta resolução do conflito, e se ela aumentasse a tensão no ambiente a situação tenderia a piorar para a própria. Claro que isso não bastou para acalmá-la. Ela queria mais. O nosso juramento de idoneidade para trazermos um novo perito em casos de vazamento. Uma coisa um tanto patológica, já que temos que dar conta de correntes de água fria e sórdida cobrindo mentes já um pouco perturbadas.
Sorte que Dostoiévski já percebeu o problema, há mais de um século, e escreveu:
“Antes de tudo eu quero viver, do contrário seria melhor não existir”. Imagem: "Building" Padrão foto criado por evening_tao - br.freepik.com






Muito boa essa historia! Quero saber os próximos capítulos! :)