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A Vacina de Madureira

  • Foto do escritor: Ulisses Duarte
    Ulisses Duarte
  • 12 de fev. de 2021
  • 6 min de leitura

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Jurandir partiu cedinho para buscar o primeiro lote da nova vacina em Madureira. Queria estar lá o quanto antes para receber aquilo que tinha reservado: pelo menos cem ampolas solicitadas ao seu novo fornecedor.

Foi seu sobrinho, também empreendedor das ruas, que deu a dica. Ele recebeu a notícia de que a muamba tinha chegado no dia anterior da China, escondidinha numa carga de brinquedos no porão de um navio ancorado no porto de Santos. A muamba passou sem ser notada pela Receita, sendo distribuída na cidade do Rio de Janeiro a partir dos atravessadores da Pavuna; e daí para alguns bons pontos comerciais da Zona Norte carioca.

Todos os camelôs da cidade estavam atrás do lançamento. Qualquer comerciante queria ter para a venda algumas centenas de doses da vacina milagrosa, mesmo com a procedência clandestina do novo produto. Jurandir tinha fé de que iria vender todo o estoque em instantes no Centro da cidade. Para ficar são e salvo da crise, e ajudar as pessoas a se livrarem da doença sinistra, ele venderia cada dose a preços nada exorbitantes para sua clientela fiel: não mais do que sessenta reais por cada cota. Ou setenta, já aplicada no braço, e todo mundo feliz. Tudo era business.

Antes das sete horas, tocou-se para Madureira. Comprou o ticket na bilheteria do trem na estação Central, rodou a roleta, seguiu à plataforma. Jurandir estava há mais de vinte anos vivendo do negócio das ruas, vendendo tudo o que era tipo de coisa. Ele passava os dias na esquina da Rua do Ouvidor com a Rio Branco, o seu território-chave na guerra comercial cotidiana. Bastava que a mercadoria fosse de interesse do povo, que ele a buscaria para revendê-la.

Nos últimos tempos, se virava vendendo máscaras de pano confeccionadas por sua mulher. Quando ficou sabendo da chegada da vacina da China, avisou:

- O negócio vai virar rapidinho, Creide. Vamos faturar uma grana braba com certeza. Depois é só curtir as férias. Partiu Búzios!

Na estação de Triagem, entrava e saía um enxame de ambulantes que faziam suas mercadorias rodarem a cidade inteira. Era a pequena, porém ativa, economia da metrópole. Batatas chips, queijos e salames, ralador de legumes, facas Ginsu e raquetes mata-mosquitos. Podia-se comprar até um pneu de motocicleta. Nada de vacina, ao menos por enquanto.

Desceu na plataforma de Madureira às oito e meia. Escaldantes trinta graus eram marcados no termômetro de rua. Acelerou o passo, driblando a multidão pela margem da pista, dividindo o asfalto com ciclistas, ônibus e caminhões de entrega. Encontrou o endereço indicado, na Estrada do Portela, através de um vão estreito entre tapumes habitados pelos comerciantes informais da via pública.

O ambiente da galeria era empanturrado de stands, caixas de papelão e mostruários de roupas estocadas num espaço apertado e abafado. Era só seguir até o fundo do corredor, subir dois lances de escadas internas e, ao chegar no segundo andar, dobrar à direita. Estava lá a Yan Chang, Comércio e Importação Limitada. Na última portinhola, deveria perguntar por Bolívia, o funcionário paraguaio que tomava conta da empresa naquela hora.

A Yan Chang era uma salinha de no máximo três metros por dois, especializada na importação de laptops e smartphones. Só havia um rapaz baixinho com acentuadas feições indígenas atrás do balcão. Devia ser o tal Bolívia. Jurandir solicitou os produtos especiais de sua reserva realizada naquela madrugada. Bolívia coçou a cabeça, apertou os lábios e justificou:

- Mi camarada. No tenemos más las vacinas. Nos robaram esta manhã. – avisou num precário portunhol.

- Mas como, rapaz? Já está tudo certo, foi feito o depósito do sinal ontem. Oitocentos reais já foram pagos. Vocês confirmaram tudo! – apressou-se a esclarecer, tentando melhor entender o que se passava.

- O motorista de la kombi de nossa importadora fué assaltado. Um comboio de ladrones en la salida de Pavuna... Metralhadora. Pistola Glock. Bazuca. Todo esto. No tenemos más la carga de vacinas. Ahora, tenemos o plasma de cavalo contra coronavírus. És mui bueno, do Paraguay, yo garanto. Se vende mucho. Solamente cem reales por la bolsa de soro. Excelente producto, de qualidad. Quieres hacer la troca?

- Tá de sacanagem, jogador. Eu quero a vacina que paguei adiantado. E eu sei lá o que é essa porra de cavalo para corona?

No momento da discórdia, saindo da porta corta-fogo da escadaria daquele andar da galeria, surgiram cinco homens aparamentados, de colete bem forrado, distintivos e armas na cintura. Eram três candangos da Polícia Federal, acompanhados por dois agentes da vigilância sanitária. De pronto, eles perguntaram pelos lotes da vacina clandestina, um produto totalmente proibido em solo nacional. Explicaram que a diligência provinha de uma denúncia anônima. A notícia correu solta pela internet nas últimas horas e, com uma rápida obtenção de informações, eles chegaram àquele exato endereço em Madureira. Conforme os relatos, A Yan Chang Importadora seria a receptadora de uma parte do lote ilegal que vinha da Pavuna.

Jurandir entregou-se logo aos agentes, achando que abordagem seria dura, como ele era acostumado a presenciar em ocasiões normais de batidas policiais na pista. Botou as mãos para cima do balcão, e já antecipou o papo dizendo-se inocente aos agentes que, apesar de agirem com rigor, prezaram por uma conduta civilizada. Bolívia tentou desmentir a existência da carga, que para sorte da sua empresa, havia sido desviada do seu estabelecimento por ação de bandidos.

As suspeitas dos investigadores eram de que os dois estavam envolvidos com a carga ilegal. Por isso, Bolívia e Jurandir foram conduzidos para a delegacia. Aquela história merecia ser tirada a limpo. Entraram algemados na viatura para prestarem depoimentos na Polícia Federal no Centro do Rio de Janeiro, a poucos quilômetros do ponto da banquinha de Jurandir na rua do Ouvidor.

Na delegacia, Bolívia fez uma ligação ao seu chefe Yan Chang, que dava nome à empresa. O empresário sino-brasileiro ofereceu todo o apoio jurídico, através de seu advogado de confiança, para tirá-lo da enrascada. Bolívia prestou seu depoimento, soube da retenção de vários de seus produtos não regulamentados como o plasma de cavalo, e recebeu uma multa lavrada para o CNPJ de seu patrão por receptação. Acabou sendo liberado. Recebeu um aviso: as investigações sobre a vacina seriam apuradas até a Federal colocar no xadrez os peixes graúdos.

No ar-condicionado gelado da sala do inspetor, Jurandir prestou seu depoimento contando toda a verdade pré-existente, o fato de ter sido a primeira vez que tinha colocado seus pés naquela loja. Em menos de dez minutos, os investigadores perceberam que Jurandir mais havia caído num golpe do que, na prática, estivesse envolvido na operação de compra e venda dos lotes da mercadoria clandestina.

Jurandir percebeu que um agente que entrara na sala, para ouvir seu depoimento, utilizava uma máscara de pano bastante familiar. Aquela peça havia sido confeccionada pelas mãos de sua esposa. O bordado lateral da marca confirmava: um naipe de ouro dos baralhos de cartas. Atrás da máscara fabricada por Creide estava o agente Osmar, cliente antigo de sua banquinha.

Osmar, de vez em quando, passava na sua área para tomar um copo de café com leite e marcar uns numerozinhos da sorte do jogo do bicho. O agente da federal era um daqueles caras que Jurandir insistia em chamar por doutor. O camelô sabia que cultivar boas relações com os homens das leis quase sempre abria a possibilidade de algum benefício futuro, tratando-se das relações difíceis que mantinha com o pessoal do rapa e da guarda municipal.

Osmar ouviu atentamente Jurandir até o final do seu depoimento. E o camelô, logo ao ser liberado, permitiu que o agente policial o levasse até ao saguão principal da delegacia. Quando já estavam a sós na saída do prédio, Osmar, sem pestanejar, anunciou ao comerciante:

- Jurandir. Esse rolo tá resolvido. Deixa comigo que essa investigação já morreu.

Um pouco constrangido, Jurandir não sabia como iria retribuir o apoio:

- Ah, patrão. Nem sei como vou agradecer. Passa lá na minha banca que você merece receber uma cortesia, coisa boa, de amigo a amigo.

Osmar, no entanto, já tinha suas preferências:

- Jurandir. Vamos fazer o seguinte. É só me arrumar três vidrinhos daquela vacina que tá rolando na Zona Norte. Um para mim, outro para minha mulher e um para meu filho. Coisa pouca. Se arrumar três doses eu juro que você terá mais do que um parceiro. Serei bem mais que seu padrinho, vou virar seu irmão de vez. E viva à família...

Jurandir concordou com a ideia de Osmar num leve balançar de cabeça, e imaginou, resignado, o quão difícil seria sua próxima viagem até a Pavuna. Nas suas contas já se foram perdidos, pelo menos, oitocentos reais. Seria bem difícil explicar os prejuízos à dona Creide.

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