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A Solidão

  • Foto do escritor: Ulisses Duarte
    Ulisses Duarte
  • 17 de fev. de 2023
  • 3 min de leitura

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João Luiz, pela última vez, abriu a porta do apartamento para encontrar a casa vazia. A cada nova chegada a repetição de seu ritual noturno. Lavar as mãos, tirar os calçados na entrada da cozinha, despir-se no corredor do quarto, e escolher o que iria comer mais tarde.

Bebeu um copo d’água, escolheu uma música no player do notebook e procurou se encontrar na frente do espelho. Como num reconhecimento facial dos dias que se passaram, as marcas na pele do rosto e os vincos em volta dos olhos lhe davam a dimensão da passagem do tempo. O maldito tempo evapora. Foi-se o homem forte e jovial de décadas atrás. Restou a desesperança de não ter o que sempre buscou: ser amado por tudo aquilo que desejou.

Perdeu o pai num terrível acidente de carro há muitos anos. A mãe faleceu de complicações cardíacas há três. Ela vivia em ciclos de depressão e de mania. A esposa fechou a porta na sua cara naquela mesma época de perdas, e nunca mais voltou. Acusava-o de não ter mais se interessado por ela na vida conjugal. Desatento como sempre, ela insistia que ele só vivia para gastar o tempo com as suas futilidades. Ela queria mais da vida, arrumou um novo amor e saiu de casa. Foi justo, João Luiz admite mesmo a contragosto.

O apartamento ficou vazio. Não teve filhos, nem cachorros, gatos ou passarinhos. Aos 48 anos completos, a cada vez que chegava do escritório, e a vida agitada das ruas silenciava, ele se dava conta da inutilidade de sua vida ordinária.

O sonho da casa própria quitada, conquistou. Um emprego estável, férias de trinta dias sempre gozadas em viagens ao exterior, realizou. Reconhecia que era o sonho de muita gente. Um privilegiado. Chegou a conhecer algumas mulheres nos bares da cidade, na época em que buscava diversão e sexo fácil. Desistiu de ter novas companheiras quando a última delas o pressionou por mais ligações obrigatórias ao longo do dia e outros sinais de ciúmes descontrolado. Não suportou a cobrança.

Não sabia dizer porque se aproximar de alguém parecia que não fazia mais sentido. Nada de novos amigos, poucos colegas de trabalho. Passavam-se semanas e João Luiz só se comunicava com o porteiro e com a caixa de supermercado no dia de compras. Dava boa noite aos que encontrava no elevador, e só.

Assistia, como de costume, futebol na tevê. De vez em quando aparecia na igrejinha ao lado de casa. Não era muito religioso, nada de fé exagerada. Gostava de falar com o padre, ouvir suas orientações de fé. Rezou por anos a fio, antes de dormir, para reencontrar algum caminho. Sabia que de alguma forma se contentava em acreditar nisso, já que recorrer a fé era um subterfúgio. O alívio que, no entanto, não bastava.

Depois de se secar com a toalha, João Luiz colocou seu pijama, rasgado nas mangas pelos anos de uso, e preparou uma refeição leve: salada, arroz, peito de frango. Pensou em botar um filme na tevê da sala, mas o cansaço daquele dia o impediu de chegar ao controle remoto ao lado do sofá. Hora de se recolher.

Sentou-se na cama, sentiu uma dor estranha que vinha das entranhas da caixa torácica, o que era corriqueiro, dado um insistente refluxo. Começou um breve pai-nosso, lembrou-se dos momentos doces quando ele vivia com seus sonhos de construir uma família, comprar um sítio, ter uma mulher dedicada e ser um profissional de renome. Coisas da juventude, certa imaturidade.

A dor aguda no peito aumentou, encostou-se no travesseiro na ponta da cama assustado. Estendeu a mão para encontrar o telefone celular no bidê ao lado da cama, e o sistema circulatório parou funcionar num espasmo. A perna caiu para o lado, e a cabeça de João Luiz ficou pousada fora do leito. Tremeu dos pés à cabeça, com a mão no meio do peito, e sorriu.

Passaram-se oito dias naquele prédio residencial. Ninguém sentiu sua falta. Os vizinhos sentiram um cheiro esquisito de carniça, que aumentava a cada dia. As moscas circulavam entre as frestas das janelas e entravam nas outras unidades. O porteiro matutino foi checar o que tanto os vizinhos reclamavam naquele andar. Bateu à porta por várias vezes, e percebeu que algo estava errado. O Corpo de Bombeiros chegou em duas horas, arrombou a porta de entrada a marretadas. Encontrou o corpo de um homem em aguda decomposição. João Luiz na falta de vida, pela primeira vez, descansou. Imagem: Jackson Pollock. Mask (1941).

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